quinta-feira, maio 12, 2005

artigo de célia musili na folha L.

O choque do nu

Célia Musilli

O Dia do Nada, comemorado por um grupo de artistas de Londrina na semana passada, rendeu mais do que performances na rua, rendeu prisão para três integrantes que tiraram a roupa em praça pública.
O ato considerado ‘‘obsceno’’ que justificou a prisão dos artistas, deixa no ar interrogações e indica que a reflexão é o caminho para compreender o que não pode ser taxado apenas como manifestação sem pé nem cabeça. Quem viu no happening apenas os artistas sem roupa não atentou para o título da instalação que justificava o nu: ‘‘Corpo sem roupa, roupa sem corpo’’. A oposição dessas idéias indica que se pretendia mais do que chocar a opinião pública. Um choque também questionável porque o nu, no país do Carnaval, já ganhou as ruas há muito tempo.
Quem se chocou com o nu num contexto diferente do carnavalesco ou do show que a mídia oferece diariamente com mulheres e homens expondo corpos como mercadorias, talvez não tenha compreendido que no Dia do Nada o nu significava a retomada da individualidade numa sociedade massificada. Mais do que corpos sem roupa e também desprovidos de qualquer apelo erótico, chamaram minha atenção as ‘‘roupas sem corpo’’, aquelas ‘‘embalagens’’ de gesso vazias que fazem sentido para quem observa que a roupa não é mesmo nada se não tiver conteúdo, de preferência conteúdo humano e de qualidade. As ‘‘roupas sem corpo’’ foram o protesto mais contundente do Dia do Nada a um mundo sem conteúdo, onde a roupa vale mais que o indivíduo. Um mundo onde se valorizam grifes que massificam identidades. E quando, enfim, o artista fica nu, diluem-se num corpo de carne e osso as expectativas de poder a partir de signos que formatam as aparências. E as aparências enganam. O nu nunca esteve dissociado da arte que, libertária por natureza, sempre absorveu a beleza ou feiúra dos corpos indicando que somos apenas humanos, demasiadamente humanos, e assim nus podemos ser representados nas esculturas gregas, na fotografia contemporânea ou num happening no fim da tarde. Está certo que na ‘‘terra brasilis’’ a nudez passou a ser vista como pecado desde que vestiram os índios. Mas um passeio rápido pelo repertório da cultura nacional aponta nichos onde o corpo, o erotismo e o sexo são tratados de forma grosseira e simplista e ninguém se choca. A mesma sociedade que considera inofensivo o refrão da música ‘‘Festa no Apê’’, que fala em orgia e bunda-lê-lê, não suporta a nudez sem revestimento erótico à luz do dia. E foi isso que os artistas do Dia do Nada fizeram, tiraram a roupa sem apelo erótico e sem imprimir no gesto qualquer contestação a não ser a do direito de retomar sua identidade humana. Nus em pêlo como vieram ao mundo. A contradição dos que se escandalizam é aceitar a banalização do corpo e reprimir a nudez sem apelo sexual.
A mim choca mais ver um cachorro vestido do que um ser humano nu. Dias desses vi na rua um cão de colete que não conseguia coçar o pescoço porque uma ‘‘gravata’’ o impedia. Aí sim, deu vontade de gritar para o guarda: ‘‘Solte o lulu e prenda a madame.’’

CÉLIA MUSILLI é jornalista da Folha e editora do Caderno Folha2 e da Folha Cidadania

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